sábado, 5 de novembro de 2011

A QUE TUDO SE DESTINA






Ainda acho impossível desvincular João Victor da cardiopatia. Às vezes penso que é dele que Manuel Bandeira fala quando retrata a si mesmo em “Andorinha, Andorinha”. Aliás, o verso/prosa “a história da minha adolescência é a história de minha doença”, trocando “adolescência” por “infância”, se saísse da boca de João Victor não seria recitação de lavra alheia, mas uma confissão, um desabafo, pessoal.

Mas não queremos que seja verdadeira a frase de Bandeira na vida do João. Precisamos descobrir e acreditar que pra ele existe vida, e muita vida, além da doença.

Tem mais.

Semana passada Valéria me falou de um rapaz down, com quase 30 anos de idade que só come comida pastosa e ainda precisa de auxilio de outra pessoa antes e depois de realizar suas necessidades fisiológicas. A mãe dele, já cansada de tanta luta, desistiu de mudar essa realidade. Tirou o rapaz da escola, ele não tem nada pra fazer, fica. E vai deixando o tempo consumir a vida, a pouca que ainda resta.

Foi principalmente por causa desse caso que acordamos para necessidade, urgente, de “esquecer” a cardiopatia e nos concentrarmos na síndrome.

Até agora, cuidamos de João Victor como se ele fosse um bebê, parece que não enxergamos que ele está crescendo e o melhor cuidado que podemos dar a ele é investir na sua autonomia. Sobre isso, há tempos, o pessoal da APAE nos vinha abrindo os olhos. Mas foi preciso um choque de realidade para perceber a verdade.

Hoje, orientados pelas meninas da APAE, começamos uma serie de exercícios de terapia ocupacional (T.O.) com ele. O objetivo é fazer com que João Victor adquira concentração e aprenda a utilidade, a que se destinam os objetos. Coisas simples, como: o lápis risca, a tinta no pincel pinta etc.

Hoje queríamos que ele riscasse uma folha de papel, mas nem no lápis queria pegar. Depois que desenhei um relógio no pulso dele, sorriu e começou a rabiscar, não no papel, esse nem quis ver. Fez riscos na mão, nos braços, nas pernas e na barriga dele. Não sei se mais pelo traço ou pelo prazer da ponta do lápis tocando sua pele. Bom, o objetivo é saber que o lápis risca. Achamos que ele entendeu. Amanhã vamos voltar com a mesma tarefa.

Para que a história da infância de João Victor não seja apenas história da doença, precisamos trabalhar pesado para que ele, na infância, aprenda falar, ler, contar, comer sozinho, mastigar os alimentos e muito mais coisas. Coisas que a maioria das crianças ditas normais aprende quase que por osmose, mas que no caso de um down precisa ser estimulado e às vezes até adestrado.

Há muito trabalho pela frente.



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